A quem estiver lendo este texto, deixo claro que ele reflete minha opinião pessoal, e não a da ABRAVEI – Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores – da qual sou cofundador e membro da diretoria.

Sabem aquelas situações em que, de tão envolvido que você está, é necessário distanciar-se um pouco para ter uma visão geral e compreensiva do quadro inteiro? Este é o caso aqui.

A mobilidade elétrica no Brasil, iniciando pelo estado de São Paulo, está sitiada, acuada e sob sério risco de ser morta por asfixia. Justamente ela que, entre tantos aspectos positivos, é um dos principais fatores que contribuem para a redução da poluição atmosférica nos grandes centros urbanos como…São Paulo.

É necessário identificar os protagonistas e detalhar algumas ações de um esquema meticulosamente planejado. Empresas como Toyota, Stellantis, Volkswagen e o setor sucroalcooleiro têm demonstrado uma preferência notável por manter o status quo, resistindo à ascensão dos veículos elétricos nas vias do país. Este comportamento parece refletir uma postura conservadora e obstinada, que não condiz com os avanços necessários rumo a uma mobilidade mais sustentável. Vale ressaltar que ao nomeá-los como “protagonistas”, reconheço que podem existir atores secundários que, possivelmente sem plena consciência das consequências, contribuem para esse cenário, como o Corpo de Bombeiros de São Paulo e, talvez, o de Goiás, como explanarei adiante.

Devidamente identificados, vamos a alguns dos movimentos desses atores. Primeiro, existe uma campanha violenta para causar o que os americanos chamam de FUD – Fear, Uncertainty and Doubt em relação aos veículos elétricos. A Toyota é a mais declarada, escancarada e atuante montadora global de veículos a combater os elétricos. No Brasil, suas concessionárias repetem o bordão de que seus veículos híbridos “não precisam carregar na tomada”, como isso fosse uma vantagem. Fora do país, entre as diversas ações feitas contra os veículos elétricos, estão a confusão que criam entre os “eletrificados”, induzindo o consumidor a achar que é tudo a mesma coisa (https://electrilied.com/ e https://bit.ly/eletrizante1) e, pasmem, distribuir uma cartilha nas escolas japonesas que fala sobre o futuro da mobilidade sem mencionar os veículos elétricos (https://bit.ly/eletrizante2). E claro, tudo aqui sempre muito bem acompanhado de lobby junto aos governos. Inclusive no Brasil. E vejam: a Toyota, mais uma vez, foi considerada a montadora que mais faz lobby contrário às questões relacionadas à crise climática (https://bit.ly/eletrizante12).

E isso é o gancho para outro movimento, desta vez capitaneado pelo governador do estado de São Paulo com sua base governista na ALESP: o governo desfigurou um projeto de lei do Deputado Estadual Donato que, com o objetivo de mitigar os efeitos da crise climática, isentava o IPVA de veículos não poluentes (entre eles, claro, o 100% elétrico). Simplesmente, o projeto de lei enviado à ALESP propõe isenção de IPVA para ônibus, caminhões e carros híbridos movidos a hidrogênio ou etanol, mas exclui carros elétricos a bateria (https://bit.ly/eletrizante5). Quem tiver paciência (e estômago) pode ler um pouco mais de um dos debates na ALESP nesta página do Diário Oficial do estado de SP: https://bit.ly/eletrizante4. Como eu assisti a algumas sessões da Assembleia em que houve o debate sobre o projeto, posso afirmar que estão claro os “dedos” da Toyota e do setor sucroalcooleiro por trás desse projeto que vai na contramão do mundo no que se refere ao combate da crise climática que estamos vivendo. Inclusive, soube por fontes ligadas a alguns deputados, que a força-tarefa lobista da Toyota ficou por semanas atuando na ALESP. E, um fragmento de uma conversa com uma dessas fontes no WhatsApp, que prefiro manter anônima, em um dos dias de debate do projeto de lei na ALESP sintetiza bem a força desse lobby.

Caso não dê para identificar, todos esses veículos são Toyota Corolla, híbridos convencionais estacionados na ALESP. Detalhe: a Toyota perdeu a liderança no mercado de híbridos no país recentemente para as novas entrantes GWM e BYD, ambas com anúncio de investimento e fábricas no Brasil. E, calma: não estou fazendo lobby para elas e vou tecer críticas a ambas também mais adiante.

Um dos argumentos dos deputados da base governista foi, escancaradamente, o investimento que a Toyota anunciou que fará no estado (R$ 10 bi). Mas, esquecem que a GMW também anunciou investimento semelhante em sua futura planta em Iracemópolis – SP. Outro argumento é que o etanol é um biocombustível que devemos estimular porque os canaviais sequestram o CO2 emitido pelo combustível. Só tem dois grandes problemas com esse argumento frágil: as pessoas vivem nas cidades, onde os carros emitem o CO2, e não nos canaviais. E outro: a queima de etanol produz outros poluentes terríveis que, de fato, não causam o efeito estufa. Eles simplesmente são cancerígenos e/ou prejudicais à saúde como o aldeído e o NOx. Quer saber o outro lado do etanol, leia aqui https://bit.ly/eletrizante7.

Mais um movimento: mesmo sem planta fabril no estado de São Paulo, a dona Stellantis também deve estar feliz, pois recentemente divulgou que produzirá modelos híbridos e micro híbridos flex em sua planta no Nordeste. (https://bit.ly/eletrizante9)

Micro híbridos são veículos com uma bateria auxiliar de 12V (nano híbrido?) ou 48V para alimentar um minúsculo motor elétrico – que não consegue tracionar o veículo sozinho – cuja função é auxiliar o motor à combustão em arrancadas e retomadas. É, praticamente, um “green-washing” da mobilidade elétrica. Ou, talvez devêssemos chamar de “orange-washing”, já que a parte de “alta tensão” é destacada em laranja numa convenção seguida mundialmente. Aliás, 48V é considerado alta tensão? 12V, certamente, não. Mas, o fato é que, da forma como o projeto de lei que tramita na ALESP está redigido, esses veículos também não pagarão imposto. Se você tem um carro à combustão, vale experimentar pintar seu alternador de laranja e tentar a isenção do IPVA em SP. Vai que cola….

Para encerrar o caso do projeto de lei, a coisa mais surreal é que, hoje, uma picape a diesel, no estado de SP, paga 2% de IPVA. E um veículo 100% elétrico, paga 4%. Em breve, os veículos flex, convencionais ou híbridos, não pagarão nada – mesmo que a maioria deles rode com GASOLINA – e os elétricos, se não forem incluídos no projeto de lei, continuarão pagando 4%.

O Governo Federal também entrou na história, retomando o imposto de importação que, em julho, será de 35%. Aqui, juntou o lobby das montadoras, setor sucroalcooleiro e a conhecida vocação deste governo em aumentar tributos. Vamos lembrar que, em teoria, não deveria existir imposto de importação para produtos que não possuem similar nacional. E, até agora, não temos produção de veículos 100% elétricos no país.

Já deu para perceber o cerco de fechando para os veículos elétricos no Brasil? Ainda não?

Talvez a pá de cal venha de uma instituição extremamente séria, tradicional e respeitada que, a meu ver, está entrando de gaiato numa briga de cachorro grande por um mercado bilionário: o Corpo de Bombeiros. Explico.

O Corpo de Bombeiros de São Paulo lançou uma consulta pública para normas de prevenção e combate à incêndio a serem adotadas em vagas com carregador de veículos elétricos. Para não ficar muito chato, vou apenas colocar em itens alguns dos motivos do porquê isso é um equívoco e a drástica conclusão do que pode acarretar:

– Estudos mundiais (Rise – Sueca e EVFiresafe – Australiana) mostram que não há correlação entre veículos elétricos em processo de recarga e incêndio espontâneo, já que apenas 21,3% dos raríssimos casos de veículos elétricos que incendiaram foram em processo de recarga. Logo, por que adotar medidas específicas para vagas com carregadores?;

– Estudo americano da Auto Insurance EZ aponta que apenas 25 (vinte e cinco, sim!) em 100 mil veículos elétricos incendiaram. No caso de veículos à combustão e híbridos, esses números sobem para 1.529 e 3.474, respetivamente (!). Ou seja: os veículos elétricos são 60 vezes menos propensos a pegar fogo do que veículos à combustão;

– Até maio de 2024, em um universo de 40 milhões de veículos elétricos, apenas 0,0012275% pegaram fogo. E cerca de uma centena desses casos ainda não estão bem esclarecidos;

– Outro estudo, da EVFireSafe, conclui que os veículos elétricos que são utilizados da maneira correta, e que carregam em instalações que seguem as normas, não incendeiam. Os motivos que levam a um raríssimo episódio de incêndio são: colisão, submersão, recall não atendido (e, seguir carregando o veículo após/nessas condições) e estar em um local que incendiou;

– Com uma frota de mais de 50 mil veículos 100% elétricos em circulação, o Brasil não registrou UM único caso de incêndio causado pelas baterias. Mas já foram centenas de veículos à combustão incendiados no país no mesmo período. Só no Ceará, 221 de janeiro a março deste ano. E mesmo veículos novos à combustão também são mais propensos a incendiar do que os elétricos;

– E para arrematar: Noruega, EUA, França, Inglaterra, Portugal, entre outros países desenvolvidos, já possuem milhões de veículos elétricos em suas ruas. Foram os mesmos países que adotaram medidas de segurança veicular décadas antes do Brasil, desde a injeção eletrônica de combustível aos eficientes airbags e freios ABS. É impossível que eles não se preocupem com a segurança no que se refere a incêndios em seus milhões de veículos elétricos. No entanto, eles não têm nenhuma norma de prevenção a incêndio específica para veículos elétricos. Aqui tem uma boa amostra do que estou falando, com agradecimento especial ao meu amigo, ex-presidente e atual diretor da ABRAVEI, Rogério Markiewicz, que é arquiteto e urbanista: https://bit.ly/noruegave

Que fique claro: os países citados têm normas de combate a incêndio superiores às do Brasil para edifícios residenciais. Mas não fazem distinção ou discriminam os veículos elétricos nas suas garagens porque é altamente improvável que eles incendeiem espontaneamente. O risco, real e que tem ocorrido, são as instalações elétricas fora de norma, o famoso “jeitinho brasileiro”, que têm provocado incêndios, sim, porque são o equivalente ao botijão de gás de cozinha instalado no carro à combustão. Isso é um absurdo. Tem gente utilizando tomada de 10A para carregar a 32A. Enquanto escrevo estas mal redigidas linhas, minha esposa me encaminhou uma portaria do órgão público em que trabalha que proíbe os servidores de carregarem veículos elétricos nas tomadas dos locais de trabalho. Excelente medida. E uma imbecilidade sem tamanho por parte de quem faz isso. Assim, se quisermos acabar com o risco de incêndio em um veículo elétrico, o que geralmente não é causado/iniciado por ele, que fiscalizemos as instalações elétricas.

Infelizmente, a situação posta pelo CB de São Paulo é terrível: o que propuseram configura-se em mais uma jabuticaba brasileira. Se eu fosse um bombeiro norueguês, talvez achasse uma atitude arrogante dos meus colegas brasileiros, querendo ensinar, com menos conhecimento de causa (me refiro à experiência real com veículos elétricos e a uma frota dezenas de vezes maior no meu país) a fazer meu trabalho. Como está em debate e consulta pública, talvez não saia exatamente como proposto. Mas, a esta altura do campeonato, algo tem que sair.

O Corpo de Bombeiros de Goiás pode ter ido além. Ao que me consta, não colocou a norma em consulta pública, mas deve anunciá-la amanhã, 14 de junho: https://bit.ly/eletrizante11

A matéria fala em “norma pioneira”. Se for algo absurdo, não será pioneira, pois o Brasil é o campeão em criar jabuticabas em tudo o que é setor. E eu não espero nada de bom dessa norma.

E a conclusão disso tudo relacionado ao Corpo de Bombeiros: entre 80% e 90% das recargas dos veículos elétricos feitas pelos usuários que não trabalham com seus automóveis são feitos na residência e/ou local de trabalho. Provavelmente, a maioria tem vaga de garagem em local fechado ou subsolo. Se as medidas propostas pelo CB de SP passarem integralmente, seu custo financeiro ou a inviabilidade técnica em imóveis já existentes, praticamente acabam com a venda de veículos elétricos. Como uma das maiores vantagens dos elétricos é o baixo custo por quilômetro rodado, o que considera o valor do kWh que você paga na sua residência, proibir a recarga fará com que ele não se torne interessante e, muito menos, prático, já que não existe infraestrutura de recarga pública suficiente para absorver toda a demanda doméstica. Eu, mesmo, adoro quando vou fazer compras no Assaí da Asa Norte, em Brasília, e consigo pegar uma das três vagas com carregadores veiculares. Mas, como a venda dos veículos elétricos mais baratos disparou, favorecendo uma parcela dos consumidos que não conseguia bancar um elétrico, é cada vez mais raro eu conseguir carregar nesse local. E acabo carregando em casa, também em uma vaga no subsolo. Vejam que, da forma como a norma está proposta pelo CB, certamente ambos os locais não teriam mais carregadores: o Assaí e minha vaga privativa.

Se o objetivo é salvar vidas, uma medida como a que se propõe não ajuda a diminuir as 11,2 mil mortes em São Paulo decorrentes da poluição atmosférica. Pior: pode estimular o “jeitinho brasileiro” para recarregar o veículo elétrico ignorando todas as normas de segurança.

Para encerrar o assunto Corpo de Bombeiros, a pergunta é: por que prédios comerciais têm sprinklers (chuveiros) entre outras medidas de prevenção e combate a incêndios e os prédios residenciais não? Que se dê tratamento isonômico para tudo e não se crie obstáculos praticamente intransponíveis para o consumidor ter um veículo elétrico e recarregá-lo na vaga do seu edifício. Novamente, isso serviria a interesses escusos mesmo que o propósito seja nobre.

Agora, sobrou para BYD e GWM: eu não posso acreditar que essas empresas estejam indiferentes, como parece que não estão. Mas, se há algum trabalho nos bastidores – e vamos lembrar que isso tem sido feito com maestria pela parte antagônica – o mesmo não pode ser dito pelo que vemos na mídia. Tanto em intensidade, como em efetividade. Pior: a BYD plantando matérias sobre seu gigantesco navio chegando ao Brasil com milhares de modelos destinados a destronar o Toyota Corolla, deixa seu adversário ainda mais propenso a reagir de todas as maneiras possíveis, piorando um cenário em que, ao que parece, a mobilidade está cercada por todos os lados e aguardando o desfecho final da batalha.

Acordei inspirado, de madrugada, quando eu consegui ver esse tabuleiro de xadrez montado com muita clareza. De um lado, os interesses contrários aos veículos elétricos que já nomeei. Do outro, as novas entrantes e, possivelmente, raríssimas montadoras ocidentais que querem vender e, eventualmente, fabricar veículos elétricos no Brasil. E, nós, consumidores que queremos ter um carro elétrico, olhando esse jogo e berrando para que alguns movimentos sejam feitos, ou desfeitos (se fosse possível), antevendo um triste resultado para a mobilidade elétrica sustentável.

(Agora, um exercício de futurologia)

Imagine-se, prezado(a) leitor(a), cinco a oito anos no futuro. A Toyota se rendeu aos elétricos após ter seu market share mundial drasticamente reduzido. Ainda é uma grande montadora, não mais a maior, e agora tem que correr atrás do prejuízo. Algumas montadoras ocidentais com fábrica no Brasil não conseguem mais manter suas linhas de produção exclusivas com motores à combustão porque, com a economia de escala na produção de elétricos em suas outras unidades no mundo, o custo do powertrain e outros componentes destinados exclusivamente ao mercado e produção brasileiros ficou insustentável. Terão que começar a produzir elétricos por aqui ou abandonarem o país. Quero ver desfazerem toda a lambança que está sendo feita hoje.

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