Quem tem medo do carro elétrico?

O grito

O Brasil sofre de um problema crônico, um mal terrível que o mantém sempre estagnado e com eterno status de “país do futuro”. Mas o futuro nunca chega e, se continuarmos assim, nunca chegará. O mal é a imposição dos interesses de alguns segmentos do mercado – e sua gigantesca capacidade de lobby junto ao governo – sobre os interesses do país.

Segundo Tarcísio Vieira, “se a lâmpada tivesse sido inventada no Brasil, teria sido proibida pelo lobby dos fabricantes de vela”. E, por mais tragicômico que essa frase possa parecer, a probabilidade disso acontecer seria muito grande.

Voltando ao tema deste texto, veículos elétricos em geral, e carros elétricos em particular, já são uma realidade mundial. O número de carros elétricos cresce ano a ano, apesar de ainda ser insignificante frente ao total de carros com motores à combustão. Em 2017, atingiu-se a marca de 2 milhões de carros elétricos no mundo. Mas, apenas no Brasil, existem cerca de 43 milhões de carros à combustão.

Por ser uma nova tecnologia, os carros elétricos ainda são caros em comparação aos carros convencionais. A tendência é que o aumento da produção traga economia de escala e redução do preço de venda. E isso se os fornecedores de matéria-prima para fabricação das baterias não resolverem comportar-se como a OPEP no passado e subirem os preços de maneira abusiva. Logo, apesar do volume de carros elétricos crescer ano após ano, é utópico acreditar que, no Brasil, a adoção deste tipo de tecnologia seja algo avassalador no curto prazo, já que além do preço elevado, há uma mudança cultural por parte do consumidor e todas as incertezas ligadas a esse novo tipo de veículo, como preço de revenda, infraestrutura de recarga, peças de reposição e manutenção especializada.

Apesar do improvável arrebatamento do carro elétrico no país, setores como o sucroalcoleiro e, até, das montadoras de veículos parecem apavorados, pois dão declarações públicas contrárias a qualquer tipo de incentivo fiscal para os carros puramente elétricos. Pior: atribuem ao etanol a melhor alternativa para que o país reduza suas emissões de CO2, seja em carros flex ou híbridos convencionais (sem autonomia exclusivamente elétrica) com motores convencionais baseados nesse combustível. Evidentemente, levantar a bandeira do etanol é algo extremamente calhorda, pois o Brasil é um dos líderes mundiais na produção desse combustível e isso desperta um sentimento análogo ao do “Petróleo é nosso”, pois o etanol é nosso, realmente.

Mas, por trás desse posicionamento, o que se esconde é o jogo de interesses, o ato de puxar a brasa para suas respectivas sardinhas. Enquanto o setor sucroalcoleiro não quer nem vislumbrar a possibilidade de ter algum tipo de concorrência em fornecimento de energia para a mobilidade veicular, o das montadoras quer atrasar o máximo possível a necessidade de investimento nas fábricas já instaladas no país, ou até em novas unidades de produção, e em toda cadeia produtiva para que possam estar aptas a fabricar carros elétricos.

Vamos nos debruçar sobre a questão do etanol, então. De fato, o uso do etanol como combustível promove uma emissão de CO2 e materiais particulados menor do que o uso da gasolina. Mas, nem de longe, a monocultura é algo ecologicamente correto. E, pior, ao longo de nossa história já vivemos diversos momentos em que o setor sucroalcoleiro alternou entre produção de álcool e açúcar, conforme o produto final que lhe trouxesse mais receita. Quem tem mais de 40 anos já viu o álcool sumir das bombas dos postos de combustível várias vezes. E, mesmo hoje em dia, são raros os momentos em que uso do álcool é financeiramente mais interessante do que a gasolina para quem abastece seu carro.

Além disso, quem defende o etanol em detrimento do carro elétrico, esquece de mencionar que carros elétricos incentivam fortemente a microgeração distribuída de energia, principalmente, com a implantação de usinas solares fotovoltaicas nas residências ou empresas dos usuários dos carros. Tenho diversos amigos que geram sua própria energia elétrica, inclusive para seus veículos elétricos. E, eu mesmo, estou em vias de implantar uma usina solar de 149 kWp no condomínio onde moro. Vivemos num país com um dos maiores potenciais de geração de energia solar do mundo. Se a recessão pela qual o país está passando não tivesse ocorrido, e mantivéssemos o nível de crescimento da década passada, viveríamos novos apagões. Logo, o estímulo natural à microgeração distribuída desafoga a matriz energética do Brasil e é 100% sustentável.

Agora, vamos olhar o lado das montadoras. Em 2017, o Brasil aumentou em quase 50% o volume de exportação de veículos. E a ANFAVEA quer ampliar mercados, prioritariamente exportando para outros países da América Latina e, em um segundo momento, para África e Oriente Médio. O “segundo momento” vai acontecer quando os países desenvolvidos banirem os veículos à combustão, como França, Alemanha, Inglaterra, entre outros, já estão fazendo. Eles despejarão suas tecnologias banidas e ultrapassadas no Brasil, que passará a fabricar veículos que, de fato, só poderão ser aceitos em lugares como Oriente Médio e África, em que não existem restrições de emissões. Mesmo na América Latina, nossa condição protagonista na exportação de veículos pode ser afetada se não nos prepararmos para a produção e desenvolvimento de tecnologia de carros elétricos. Há dinheiro em cima da mesa e, se o Brasil não pegá-lo, alguém o fará. Queremos ser um país que produzirá veículos que o mercado europeu, e parte do americano, não mais aceitarão? Ou queremos estar na vanguarda da tecnologia?

Colocar o etanol como alternativa ao carro elétrico, lembrando que são tecnologias que podem e devem coexistir, atende, então, aos interesses de ambos setores: montadoras de veículos e usinas de álcool. Afinal, motores à combustão, mesmo em carros híbridos convencionais, exigem menos adaptação e investimento da indústria automotiva e continuarão garantindo uma boa receita às usinas. Mas carros híbridos convencionais, excluindo-se sempre os híbridos plug-in, são apenas carros mais econômicos. Mas que sempre consomem combustível e emitem gases de efeito estufa. Híbridos convencionais não são transição para elétricos, pois não trazem mudança de hábito do consumidor como, por exemplo, ter de carregar seu carro em tomadas ou eletropostos. Híbridos convencionais são, no máximo, uma transição para a indústria ou um pretexto para adiar investimentos mais expressivos em suas linhas de produção e na cadeira de fornecedores.

Vale a pena destacar que nosso país tem, pelo menos, dois polos de desenvolvimento e pesquisa de novas tecnologias promissoras para aquele que se desenha como o eventual gargalo na produção de carros elétricos: baterias de íons de lítio. No caso, temos um centro de pesquisa de baterias de sódio (sal) em Itaipu e, em São Paulo, a Universidade Mackenzie desenvolve pesquisa com baterias de grafeno (carbono). Ambas são matérias-primas abundantes e recicláveis.

Assim, no Brasil, temos uma equação que o carro elétrico vem acompanhado da alavancagem da microgeração de energia elétrica, de desenvolvimento de novas tecnologias em baterias que poderemos vir a exportar no futuro, de redução drástica na conta de combustível, do incentivo a um novo mercado de peças e mão-de-obra e da manutenção do lugar de destaque do país na produção e exportação de veículos, desta vez com tecnologia de ponta. Todos aspectos extremamente positivos para o país, sem que isso acabe com o mercado sucroalcoleiro, sem que isso impacte significativamente as vendas dos carros à combustão mas, sim, criando condições para que nosso país possa, enfim, ser o país do futuro em termos de mobilidade elétrica. Não há porque temer o carro elétrico, principalmente se esse medo pode paralisar o país e condená-lo a estar sempre na rabeira da tecnologia, condená-lo a ter uma economia frágil e fortemente baseada em commodities.

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